terça-feira, outubro 31, 2006

Call ME Babe

Ela se olha no espelho. Cinquenta e cinco anos, bem sucedida "Até apartamento próprio ela tem. Mas não casou. Já viu né?". Casou sim, ficou vinte anos com o mesmo filho da puta, aguentou até a proibição de não ter filhos. A tragédia da sua vida conjugal foi a submissão. Não importa o quanto se convença da sua real beleza, sente-se como o reboco velho da cozinha, se desfazendo. Se maqueia repetidas vezes, nada consegue tirar aquele tom de mulher histérica que o tempo lhe deu. "Eu sou uma mulher bonita. Eu Juro". Só cinquenta e cinco anos, ainda é jovem, coloca uma mão por dentro da calça "Tá aqui, ainda é quente. Eu não tô morta, nem frígida não". O tempo é implacável para a mulher. O som ligado "No, not babe anymore...". Que diabos a garota da música sabe, nada. Uma anoréxica, que dá três vezes ao dia, tem a vida ganha. Ela não. Até pagar, ela já precisou pagar. Um dia pegou um ônibus, só pra lembrar como era andar pela cidade. Sentou do lado de uma senhora com um bebê, ficou encarando a criança. Tinha aquele cheiro de coisa verde misturado com talco que os bebês têm. Fungou o bebê, tentando roubar um pouco daquela juventude. Doente, ela chegou a conclusão de que era uma doente. Desceu do ônibus aos prantos. Se odiando. Será que só sobrava se odiar? Cadê aquela serenidade que a idade tinha de trazer? E a tal da sabedoria? Os anos só lhe trouxeram infelicidade. Não tinha cinquenta e cinco, tinha cem anos, porque era assim que todo mundo a tratava. Você só pode se definir de verdade pela comparação com os seus semelhantes. Ela já não era mais mulher, era uma velha. Uma das patéticas ainda por cima, daquelas que ainda querem amor. O rapaz da casa ao lado um dia lhe perguntou as horas, um daqueles rapazes bonitos, bem arrumados, simpático "SAI DAQUI VIADINHO. SAI DAQUI. Odeio viadinhos". Odiava a simpatia dele e os cachos negros caindo no rosto e os olhos castanhos brilhantes e, acima de tudo, a juventude dele. Tinha um pouco de bosta de cavalo na rua, colocou na frente da casa do coitado e bateu com a ponta do guarda chuva na merda pra exalar o fedor. Quebrou meia dúzia de pratos também. Mas isso era bom, poderia sair pra comprar mais. Tolices. Sua vida se resumia a pequenas tolices. Pratos, roupas, homens. Não, homens são grandes tolices. Antes tivesse virado lésbica como sua amiga de infância, afinal, hoje em dia, parece que todo mundo é gay . Nunca mais se falaram desde aquela noite. Tentou várias vezes sair pra comprar suas flores, mas toda vez acabava mandando entregar um buquê com um cartão vermelho na universidade. Sabia tudo que gostaria de ler numa carta de amor. Chove muito, são três da tarde, sempre chove muito nesse horário. Sai sem a sombrinha, aquele maldito elefante branco, enorme que ajuda a escondê-la desse mundo de idotas que não ama. O vestido se molha, cola ao corpo, mostrando aquilo que só ela conhecia. A sua beleza. Atravessa o quarteirão pra chegar na rua mais movimentada. A maquiagem se desfaz, os pés de galinha se mostram, o negrume do lápis vai borrando o rosto. Não faz mais diferença. Usa da sua desfaçatez pra que os carros achem que está apenas querendo atravessar. Sua visão é perfeita ainda, isso o tempo ainda não começou a apagar. Escolhe o carro preto. Ele vai carregar a culpa da sua morte. Vai estragar a felicidade de alguém com a sua morte. Não dura nem cinco minutos e acaba.

2 comentários:

Anônimo disse...

As vezes da p se sentir assim...
Com vontade de acabar c tudo...

Sic disse...

Isso é uma previsão de futuro?

Percebi algumas semelhanças com a realidade, a minha, a tua e a de outras pessoas kkkkkkkkkkkkkkkkkk

Beijos