quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Não Vai Embora

-Não vai embora. Fica mais um pouco.
-Pra quê?
-Pra conversar, pra ouvir música, pra transar sem compromisso, pro que quer que seja, mas fica, por favor.
-Dispenso o sexo sem compromisso, desse a gente fez demais. Música, contanto que não seja Los Hermanos.
-Qual o problema com Los Hermanos?
-Eu não aguento mais Los Hermanos. Você me fez enjoar deles.
-Não fala assim.
-Não foi só deles que você me fez enjoar. Deletei tudo relacionado a pintura na minha vida, qualquer coisa além do monocromático me dá ansia de vômito.
-Sai da porta. Entra.
-Não dá, se eu fumar aí dentro vai ficar tudo cheirando a cigarro.
-Você voltou a fumar?
-Nunca parei. Fumava pelo menos uns três depois que te deixava no trabalho.
-Você mentiu pra mim por 3 anos?
-Menti.
-Que mais você escondeu de mim?
-Eu retribuía com favores sexuais o porteiro, toda vez que ele subia as compras do supermercado pra mim.
-O QUE?
-É, ali na escada de incêndio, por isso que ele nunca consertou a lâmpada.
-Eu não acredito que você fez isso.
-Lógico que não, mas deveria ter feito, já viu como ele é gostoso?
-Você é maluca.
-Não, você é que é sem graça.
-Comprei um sofá.
-Tá... Tudo bem, eu entro.
***
-Vô fazer um chá.
-Não quero.
-Vô fazer de qualquer jeito.
***
-Tem certeza de que não quer chá?
-O QUE?
-CHÁ. QUER CHÁ?
-Não.
-HEIM?
-Tô de dieta, não posso tomar chá.
-QUE DIETA É ESSA?
-Três cigarros antes e depois das refeições e nada líquido.
-...
***
-Eu disse que não queria chá.
-Eu fiz mesmo assim.
-Eu queria ficar com o cachorro.
-Você não deve ter comida em casa.
-Eu passo no supermercado.
-É que ele me lembra você.
-Você sabe que tá me comparando com um bicho velho, meio surdo e cego de um lado né?
-Você sabe o que eu quis dizer.
-Cansei de fazer abstrações, não faço mais nenhuma. Esgotei minha capacidade intelectual.
-Isso é culpa minha?
-É, esgotei ela toda com você. Doei todos os meus livros e o seus que estavam no meio. Um dia eu compro outros.
-Não precisa.
-Não serão pra você. Já te dei demais.
-Você tá exagerando.
-Olha, eu vou embora tá?
-Fica, por favor.
-Não.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Homem Formiga

As minhas horas no ônibus geralmente são gastas lendo, mas quando não tenho o que ler a coisa desanda. Em um desses dias em que estava sem algo pra ler, comecei a divagar em cima de um diálogo, onde uma moça falava a um homem que ela não gostaria de ter com ele um momento de formiga, porque hoje em dia nós sempre temos momentos de formiga, onde cruzamos com outro ser humano, olhamos e passamos pelo lado. As formigas pelo menos trocam sinais químicos quando se cruzam e podem dizer uma a outra "vai em frente, tem comida pra carregar" ou "pega mais pra esquerda pra conseguir contornar o cocô de pombo". Nós não, nós os seres humanos passamos direto um pelo outro. Nesse meio tempo subiu uma garota no ônibus que tinha os cabelos cor-de-rosa lindos, lembrei que eu já havia escrito uma estória sobre uma garota de cabelos cor-de-rosa e ali estava ela, vivinha da silva, era ela, eu tinha certeza. Essa era a minah chance de ter um momento humano, deixar de ser formiga. Não consegui, ela passou por mim e não falei nada, continuei formiga. Mas um dia desses me ensinaram que a eucronia é o estudo sobre como as coisas poderiam ter sido. Então se eu tivesse falado com ela, as coisas teriam sido mais ou menos assim.
Quando ela passou para a parte de trás do ônibus, levantei e fui sentar ao lado dela. Dei uma cutacada no ombro, não no ouvido como eu costumo fazer com meus amigos, mesmo ela sendo uma amiga, ainda que não estivesse a par disso:
-Oi. Você não me conhece, mas é que eu escrevi uma estória sobre você.
Ela provavelmente faria uma cara de constrangida, daí eu precisaria me explicar:
-Na verdade é mais um relato sobre o teu cotidiano. Você mora faz alguns anos com um travesti, é uma jornalista e dá todos os créditos da sua habilidade literária ao seu décimo grau de parentesco com a Clarice Lispector. Você mora com um travesti, não mora?
Como o constrangimento já teria passado.
-Puxa, não, eu não moro com uma trava, mas eu adoraria ter um décimo grau de parentesco com a Clarice Lispector.
-É, eu devo ter me enganado. Até porque você não usa calça jeans, tá sempre de saia.
-Não, não. Sou eu mesma, é que as saias não secaram por causa da chuva.
-Ah tá - daria um sorriso logo em seguida.
Notei também o lacinho amarelo que ela usava. Não tinha a menor utilidade, na verdade os cabelos estavam sendo úteis para prendê-lo e não o contrário, mas ficava lindo.
-Eu não lembrava que você tinha piercing.
-É porque faz um mês só que eu coloquei. Gostou?
-Hum... É que eu não gosto muito de piercings...
Como ela não ficou muito tempo no ônibus a gente se despediria com um sorriso e um "Té mais, hein".

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Madrugada

Acordei meio assustado. Música grudenta, faz um tempão que não a escutava, Lisa não-sei-quem-lá a cantora, mais uma dessas sumidas. Não devia ter ligado o rádio. Será que tô com insônia? Droga de insônia. Será que é insônia mesmo? Eu tava dormindo até agora pouco. Será que ela acorda se eu acender um cigarro? Pego a carteira e vou pra janela de qualquer jeito. Esfrego os olhos, bagunço os cabelos e nada de sono. Logo na primeira tragada a brisa leva a fumaça pra dentro:
-Como se não bastasse ligar o rádio, ouvir música brega dos anos 90, cê ainda tá fumando?
-Desculpa, não achei que você ia acordar.
-Então nem levantava da cama animal - ela diz sorrindo - porque eu tô tentado fingir que não tô acordada desde que o meu pé começou a gelar.
Coloco o cigarro na boca, me ajoelho em frente a cama e começo a esquentar os pés dela com a mão:
-Não vai deixar cinza cair no lençol.
Ela tira o cigarro da minha boca e fica sentada na cama com as pernas arquedas. Dá uma tragada bem forte, solta tudo na minha cara e joga ele pela janela:
-Porra, era meu último e eu tinha acabado de acender.
-Mais tarde você compra mais. Vem, deita aqui.
-Tô sem sono, vou ficar aqui na janela mais um pouco.
-Vem logo, daqui a pouco tá na hora de fazer antes de levantar. Isso se eu te perdoar por ouvir Lisa Carson às 3 da manhã.
-Deixa de ser antipática - puxo os pés dela, fazendo ela cair no colchão.
Dou um beijo nos lábios. Deito. Tá tudo bem. Vai ver foi só aquela angústia que aparece quando tudo tá bem, como se a casa fosse cair e nada mais fosse ficar bem. Tem de estar tudo bem.

domingo, fevereiro 05, 2006

Outra de Borboletas

Rosana tinha 5 anos apenas e gostava muito de correr atrás de borboletas. Pegava uma rede parecida com a que o pai usava. Ele era alemão e como todo alemão que aparecia por essas bandas naquela época, era um naturalista. Estavam os dois sempre a caça de espécimes, ele pra catalogar e ela pelo simples prazer de soltá-las "Oh, desculpe dona borboleta. Não, eu jamais lhe faria mal. Suba na minha mão e irei soltá-la", e as libertava mesmo, fazendo uma reverência aos agradecimentos recebidos das borboletinhas.
Um dia, travava uma luta ferrenha para prender uma borboletinha muito bonita toda amarela. Passou a rede pelo ar com muita habilidade, mas não conseguia pegá-la, divertia-se muito com isso, era o mesmo que ter uma grande amiga para brincar. Finalmente, como se estivesse cansada de voar ela pousou nos cabelos da garota. Uns poucos fios cairam para os olhso atrapalhando a vista, Rosa deu um sopro para cima "Ei, você está bagunçando meus cabelos. Desça daí. Ah está cansanda, bem não estaria tão cansada se não fosse pela teimosia não é mesmo?".
Rosana percebeu que alguma coisa levanta alguns fiozinhos de cabelo do seu lado esquerdo. Quando virou o rosto pôde ver outra borboletinha, idêntica a que estava pousada no seu lado esquerdo "Que maravilha, vocês se multiplicaram. Isso é tão bom". Distraída como estava, ela não percebeu seu pai chegando, até que ouviu o "pluc" da tampa de uma garrafinha se fechando. Só teve tempo de ver a outra borboleta fugir.
Mesmo protestando bastante seu pai não lhe deu ouvidos. Quando lembrou que a borboletinha seria espeada com um alfinete bem fino, entrou em desespero, tinha de fazer algo por ela. Entrou na tenda que o pai havia armado e sem que ele percebesse pegou a garrafa de cima da mesa. Correu, correu tanto que até o último dos seus dias, jamais conseguira lembrar de ter corrido tanto.
O problema de ter corrido tanto é que perdera-se na floresta. A borboleta que foi batizada de Amarilda por Rosana acompanhou-a o tempo todo. Quando cansou e estava prestes a desmaiar, sentiu ser arrebatada do chão, quase como se voasse. Antes de desmaiar de verdade pôde ver um amarelo intenso, deviam ser os raios do Sol que, agora que devia etsar tão alto, podiam ser vistos em sua plenitude.
Só acordou horas depois, quando seu pai furioso e chorando a sacudia, com medo dela estar morta. Depois disso ela foi proibida de participar das incursões com o pai. Todos puderam ver o quanto isso a entristecia, mas ninguém tentou intervir.
Já crescida Rosana tornou-se uma mulher muito bela e seu ar melancólico um estranho atrativo aos homens. Naquela época as moças não podiam escolher com quem se casariam. Então quando o filho de um fazendeiro pediu ao pai que fizesse os arranjos para o casamento, o pai dela, já velho e com a visão um pouco turva, deixou que ele a desposasse.
Rosana não perdeu o ar melancólico, que era tristeza de verdade, mas só quem sabia disso era ela, para os outros alguém tão bonita e bem casada não tinha tristezas verdadeiras "Isso é enfado de mulher romântica. Quando tiver o primeiro filho isso passa".
O primeiro filho veio, era um menino loiro que lembrava muito o avô. Quando eles cresceu, Rosana viu que ele tinha seus olhos tristes e brilhantes. Se culpava terrivelmente pela tristeza que havia passado ao filho, ele era um criança, não tinha culpa alguma, ainda era inocente.
Um dia enquanto ela se arrumava os cabelos num coque e seu filho a admirava, Rosana viu um vulto amarelado pela janela. Pôs a escova na penteadeira e foi para a janela, era esse o seu sinal, tinha se ser. Chegou perto do filho "Meu filho, mamãe vai precisar sair. Não fica com medo, tá? Mamãe vai ficar bem".
Ela desatou a parte dos cabelos que ainda estava presa e saiu pela entrada principal. Procurou por todos os lugares do jardim. Até que viu pousar na porteira uma borboleta amarela, idêntica aquela outra. Quando ela levantou vôo correu paar seguí-la, correu quase como daquela outra vez, mas já não era uma menina e nem usava aquelas roupas frouxas de criança, usava roupa de mulher adulta que mais parecia uma prisão do que uma vestimenta.
Teve aquele mesmo sentimento de estar sendo arrebatada para o alto. Dessa vez não desmaiou e viu. Antes tinha uma borboleta só e ela se multiplicou como da outra vez, 2, 10, 100, mais borboletas do que Rosana conseguia contar. Elas quem lhe levantavam do chão e era delas o brilho que confundia com o Sol e jamais se sentira tão feliz de novo.