segunda-feira, janeiro 30, 2006

Promessa

Renato reuniu toda sua coragem e saiu. Já estava anoitecendo, mas ele havia prometido e não gostava de quebrar promessas. Essa em específico foi feita no dia anterior, para o seu Jorge, um mendigo meio doido que sempre aparecia lá pela rua. Ele devia ter pra lá de uns 50 anos, cabelo grisalho todo assaranhado, os olhos negros, meio desavisados do mundo ao redor.
Os meninos haviam judiado do pobre, até pedra jogaram nele, mas Renato o ajudou. Ele estava com os olhos ainda mais perdidos quando falou "Venha aqui amanhã e vou te recompensar por ter me ajudado. Promete?".
O "aqui" na verdade era um grande nada, um jardim abandonado faz muito tempo, com um monte de xaxins velhos, com samambaias murchas e erva daninha, também tinha uma mesa branca, muito velha. Apesar de abandonado, o lugar não dava medo, mas tinha uma sensação de que faltava algo.
Chegou junto com a nuvem que cobria os últimos raios de Sol, ela ficava meio alaranjada, meio branca, parecia algo de comer. Seu jorge estava de pé, a mesa de ferro a sua frente, velha e enferrujada, daquelas que os pés só se separam no final e fazem muitas curvas, e um chapéu no tampo. Pediu a Renato que fechasse os olhos.
Assim que o fez, veio primeiro o som abafado como um saco cheio de pó que espoca, e depois aquela sensação de luz forte que aquece as pálpebras quando os olhos estão fechados. O garoto abriu os olhos e pode ver o inacreditável, o lugar todo estava iluminada, como se houvesse um Sol ali, só para eles.
O barulhos era de várias serpentinas e papel picado, brilhantes e coloridos, nem pareciam feitos de papel, saídos de dentro de uma cartola de mágico, negra mas perfeitamente polida e por isso refletia a luz e o reflexo de tudo ao redor.
A grama e os xaxins haviam milagrosamente recuperado o viço, tinham um verde bonito. Além disso, várias flores brotaram no chão, como se suas sementes estivessem só esperando a oportunidade certa para nascer.
Passaram voando atrás de seu Jorge umas aves majestosas do tamanha de araras, mas eram brancas e tinham cristas azuladas assim como as caudas. Além disso, cantavam uma melodia suave que fazia a pessoa esquecer as coisas ruins. Era isso tudo que faltava àquele jardim.
A mudança mais espetacular operou-se no velho mendigo, este agora tinha seus cabelos grisalhos muito bem alinhados, um autêntico bigode de mágico, assim como uma varinha negra com a pontinha branca que ele segurava na mão esquerda, estendida para o alto como se fosse a responsável pelas transformações ocorridas. Vestia um fraque e usava uma gravata borboleta, ambos impecáveis. Seus olhos, aqueles que antes andavam perdidos, pareciam cheios de estrelas, muito vivos.
Durante o que pareceram horas Renato, que agora permitia ser chamado de Renatinho - antes não gostava, porque fazia-o parecer infantil - pôde ver coisas que nenhuma outra criança tinha visto. Na hora de se despedir perguntou por que nem todos sabiam disso, seu Jorge só lhe disse "O problema meu filho, é que para a maioria, a visão jamais ultrapassa os olhos" e lhe fez prometer que jamais contaria a quem quer que fosse sobre o jardim e as mágicas.
Muito empolgado com tudo Renatinho chegou e casa com cara de satisfeito, mas a empolgação atraiu a desconfiança da mãe, ainda mais quando este lhe disse "Sou o dono de um segredo". Seus pais, muito mais por se sentirem afrontados do que por preocupação com o filho, lhe disseram que era proibido a um filho manter segredos aos seus pais. Vendo-se sem alternativas, Renatinho lhes relatou o acontecido, muito contrariados e achando aquilo tudo absurdo, lhe proibiram de falar com seu Jorge e quando o coitado passava, sempre parecendo um mendigo roto e meio débil lhe mandavam sair de perto.
Um dia Renatinho conseguiu despistar os pais e saiu de noite para encontrar seu Jorge no jardim. Ele tentou fazer a mágica mais uma vez, puxou a varetinha e fez um floreio no ar. Quando viu que nada acontecia, perguntou ao menino se ele havia contado sobre a mágica. Desapontado, o menino lhe contou o que havia acontecido e que não teve outra alternativa. "Ah meu filho, eu te entendo, mas infelizmente eu jamais poderei fazer a mágica de novo pra você. Não há nada que eu possa fazer".
Renatinho ficou triste por muito tempo, até conseguir se conformar com o acontecido. O menino cresceu, agora já não cabia mais lhe chamar de "Renatinho", mas ele não se importava quando algum velho conhecido o chamava assim.
Ele e sua esposa tiveram uma filha, a quem amavam mais do que qualquer coisa. Decidiram que se chamaria Lúcia. Ela também recebeu o diminutivo, sempre lhe chamavam carinhosamente "Lucinha" e ela nunca se sentiu diminuída por ele. O pai jamais lhe proibiu de falar com seu Jorge. Este agora já bem velhinho e parecendo ainda mais perdido que antes.
Um dia, a menina chegou em casa com o mesmo semblante que seu pai tinha depois que saiu do jardim, um pouco sonhador e muito satisfeito, só agora seu pai via o quanto ele era intrigante. Sempre que alguém está com o semblante assim dá um pouco de vontade de saber como ficar tão feliz. Seu pai sabia como.
Lucinha também amava os pais mais que tudo e decidiu partilhar com eles o que lhe acontecera, mas quando está falou que envolvia seu Jorge, seu pai logo lhe perguntou se ele lhe pedira segredo e ela respondeu "sim". Comovido com o amor da filha, seu pai lhe disse "Não precisa não minha linda, guarda esse segredo, ele é teu" e sorriu passando a mão na sua cabeça, bagunçando os cabelos da menina. Ela protestou em defesa de seus cabelos, mas também lhe sorriu e deu a mão, seu pai a levou para o quarto já passava da hora de dormir.

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Carlinhos, o Prodígio do Assovio

Carlos Osvaldo Pinto nasceu num desses interiores onde todo mundo nasce na mão de parteira. Demorou uns dias a mais pra nascer, então veio ao mundo com um tom meio arroxeado "Esse não teve pressa de chegar, vai ver já sabia o que lhe esperava".
De cara a parteira percebeu logo "Esse aí vai ser artista". Quando lhe indagaram o por quê, ela simplesmente explicou que todo artista nasce assim, meio estranho que nem Carlos Osvaldo. Realmente, quando se parava para olhar o bebezinho, podia-se notar algo de diferente na criança.
A mãe achou ótimo, assim que a criança começou a pegar coisas comprou uma daquelas caixinhas amarelas de giz de cera que vêm com 6 cores e um caderninho. Não funcionou, no início porque Carlos Osvaldo, como qualquer criança de sua idade, tinha mais prazer em levar o giz e o caderno a boca do que um ao outro. Depois, já crescido era por ser inábil mesmo.
Um dia sua mãe estava estendo as roupas no varal e ouviu o canto se um sabia, devia ser novinho ainda, cantava com entusiasmo de quem havia acabado de aprender a fazê-lo. Carlos Osvaldo parecia encantado com aquilo. Todo dia o menino ia pra porta ouvir o sabiá cantar.
Quando ela ia lavar a roupa no rio, Carlinhos sempre a acompanhava, carregava uma trouxinha pequena, correspondente ao seu tamanho. Enquanto ela lavava, o menino brincava no rio. Distraída, só foi perceber que não havia mais barulho na água quando ouviu o canto do sabiá. Levantou o rosto e viu algo maravilhoso, quem cantava, na verdade assoviava, era o Carlinhos e junto dele, todos parados, ouvindo como se o admirassem, estavam uns três sabiás bem bonitos.
Era isso. O menino assoviava, essa era a arte do pequeno. Arte curiosa essa, não era cantar, mas era com certeza melodiosa.
Com o tempo aprendeu outros cantos, mas os favoritos eram o do sabiá e o do bem-te-vi, o do primeiro justamente por ser o primeiro, o segundo, mesmo não tendo nada de muito especial, era muito bom para pregar peças. Sempre que passava uma moça conhecidamente fogosa, Carlinhos se escondia e imitava o bem-te-vi, a coitada saía toda encabulada, pensando nos mal-feitos de sua vida.
O próximo passo era aprender a assoviar músicas. Isso nunca agradou muito a Carlinhos, mas assim que começou a aprendê-las o fez com maestria e logo chamou a atenção do vilarejo. Sempre que a banda da cidade tocava o hino nacional que, a bem da verdade, era a única música que ela tocava, Carlinhos tinha seu próprio microfone e ia acompanhando a bandinha, todo envaidecido.
Uma vez um menino chamado Tavinho, invejoso da atenção que Carlinhso recebia, tentou lhe passar gripe para prejudicar-lhe os pulmões. Felizmente isso não deu certo, porque Tavinho acabou pegando gripe demais e caiu de cama antes de poder passar para Carlinhos.
Por muitos anos ele continuou sendo o prodígio de sua cidade. Nunca mais imitou passarinho, mas em compensação, até música erudita Carlinhos, agora já um homem, sabia assoviar.
Seu talento era admirado por todos na cidade, mas sua mãe achava que seu filho era grande demais para aquela cidadezinha, que nem no mapa estava "Meu filho, você tem de ir para a cidade grande, lá tem aqueles shows de talentos. Você tem de ficar famoso meu filho".
Assim Carlinhos decidiu ir para a cidade grande. Iria mostrar seu talento pro mundo, ou pelo menos para os lugares onde os shows são transmitidos. O pobre do Carlinhos penou um bom tempo na capital, até fome ele passou, mas alguns meses depois ele conseguiu, iria se apresentar num dos tais shows de talentos:
-Muito bem meu filho, qual o seu nome e o que você vai fazer?
-Bo - boa noite... é, me chamo Carlos Osvaldo e eu vou assoviar.
-Ah...É... isso aí pessoal, palmas pro Carlos Osvaldo.
Carlinhos só tinha um minuto, mas nem se tocou disso e escolheu uma música de Mozart, e as músicas dele sempre duram mais do que o tempo na televisão permite.
Antes que terminasse foi interrompido "Muito bemmm. Esse foi Carlos Osvaldo. Vamos ao próximo competidor da noite".
Mesmo tendo feito bonito no 1 minuto que teve, Carlinhos não ganhou nada. Na verdade, ele nem esperava ganhar coisa alguma, acreditava estar ali para se apresentar.
Muito decepcionado, sentou-se num banquinho da praça. Ouviu uma pombinha arrulhar, arrulhou de volta e pombinha se chegou aos seus pés. Ficou a noite inteira assim, arrulhando para os pombinhos e eles se juntando próximo dele. De manhã, fez os sons de vários outros pássaros e eles sempre vinham ao seu encontro. Assim Carlinhos ficou ali, com seus olhos brilhando, estava feliz de verdade, sentado ali e falando com os passarinhos.

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Sexos de 20 Minutos

Sexos de 20 minutos são o sexo do milênio. Nós já reduzimos tudo em termos de espaço, o minimalismo é a tendência para os nossos pertences, linhas finas, pouco peso, dimensões reduzidas e otimizadas. Nosso tempo é o próximo passo, sim já que ele é uma medida imaterial, feitapor convenções, porque não podemos relativizá-lo? E fazê-lo para o sexo também?
Por que 20 minutos?
Porque assim dá pra encaixar no nosso apertado horário de almoço. Porque podemos fazê-lo antes de dormir, de modo a não cansar assim e ainda poder aproveitar nossas reduzidas horas de sono. Porque é uma margem de tempo segura, para uma aventura no meio do expediente sem que nada seja notado pelos outros. Porque poucos hoje sabem fazer aquele sexo de corpos suados, movimentos lentos e penetrações cuidadosas, 5 minutos já têm de ser o suficiente para a excitação mútua, os outros 15 para aquela penetração meio furiosa.
Nesses mesmos 20 minutos posso fazer um curta com sexo explícito, com uma música lindíssima e boas giradas de câmera, que garantem uma boa crítica pela inovação e ousadia. O melhor de tudo dos 20 minutos é que pode-se poetizá-los em momentos infindáveis nesses minutos, onde você termina e parece que se passaram horas, dias, anos de sexo.
A verdade é que eles são legais, são proveitosos e combatem stress e rugas. Se alguém disser que tem repulsa a sexos de 20 minutos, provavelmente não faz sexo algum há um bom tempo. Eu topo os 20 minutos, por que não? Melhor os 20 bem acompanhados do que 5 solitários antes de ir pra aula.
Quem topa?

terça-feira, janeiro 24, 2006

Fora do Real

Ele acordou com uma pontada de angústia, parecida com a que se tem ao pensar na morte pela primeira vez. Um aperto gelado no coração ao perceber que um dia não vai mais poder pensar nas trivialidades da vida. Tomou café gelado para não ter de acordar e assim não lembrar daquela pontada.
Foi pra academia e percebeu que tinha bem mais gente do que o normal. Quando as primeiras gotículas de suor se formaram na sua testa, foi como se o mundo todo estivesse errado "Tá errado. Isso tá errado. Tem que estar". A única coisa que queria fazer era sair dali.
Correu na direção de uma barra e chutou-a o mais forte que pode. Parou com os olhos fixos. Sentiu em cada segundo os músculos se estirando, a pele sendo arranhada, ouviu "tlec" de ossos quebrando e o leve formigamento que isso causa, percebeu todos os tecidos se rasgando até a ponta do osso atingir a superfície da pele, mas sem sangrar. A dor lancinante que se seguiu o fez desmaiar.
No hospital, estava sentado numa cadeira no corredor, tinha uma velhinha desgrenhada na sua frente. Iria reclamar para o médico da pontada, ela ainda o incomodava. Lembrou que era um hospital público, mas também lembrou que só existiam esses, desde a segunda guerra, quando a União Soviética foi a grande vencedora e o mundo se tornou socialista. Mas isso estava errado, devia estar.
Um homem alto e forte passou por ele e pela velhinha e entrou na sala:
- Que ultraje, você vai deixar fazerem isso com a sua mãe?
- Mas senhora... A senhora não é minha mãe.
- Seu ingrato! - seguiu-se um forte tapa na cara.
Pegou um par de muletas e saiu do hospital. Fazia um sol inclemente. Sentou em um banco na praça em frente ao hospital. Olhou para a estátua de Lênin, tinha um calango tomado Sol na mão dele. Isso também estava errado, tinha de estar. O calango balançava a cabeça pra cima e pra baixo, naquele "sim" mecânico que calangos fazem. A única coisa que parecia certa naquele dia era a pontada.

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Carminha e a Física

Carminha nasceu num dia de julho, não sei dizer com exatidão qual. Se sentia indignada de dividir um berçário com tanta gente, afinal ela não tinha pai e mãe? Por que ficava ali, jogada as traças? Era mês de férias, mas pai nem mãe tem direito a tira licença. Muito menos com uma pobre recém-nascida para criar.
Em protesto, ela chorava, isso incitava os outros bebês a chorarem também. Logo o berçário inteiro caía aos prantos. Nada daquelas imagens de novela, daquele monte de bebês calmos, de olhos bem fechados. Carminha começou sua revolução ali mesmo.
Quem mais sentiu sua revolta foi sua mãe, sempre que ia amamentá-la, sentia quase uma mordida em seu seio "Nossa, minha filinha estava com fome. Bilu, Bilu". Vejam bem, ela não era má, mas mesmo sem ter a menor noção de mundo, ninguém gosta de ser abandonado.
Não se preocupem, como toda pessoa madura, ela superou isso, afinal eram seus pais e não eram más pessoas. Ela até se apegou a eles com tempo.
O grande problema foi passar pela infância, com todas as suas limitações como precisar de alguém para lhe alimentar. Era terrível ter de primeiro engatinhar, uma forma tão pouco digna para se locomover. Mas quando aprendeu a andar as coisas mudaram um pouco de figura, sentia-se mais independente. Curiosamente, ela preferia andar, não gostava muito de correr. Exceto pelos dias em que estava enraivecida, ela corria pra porta que dava para o quintal, juntava todas as suas forças e gritava, apertava as mãozinhas e os braços sacudiam de tanta força que fazia.
Não poder falar então era ainda pior. Ninguém entendia que "Bah, bah, bah" significava "Estou com fome, me alimentem" e "BuH, Buhhhh" era "Me limpa, droga", frenquetemente os dois eram tomados por "Me alimentem, sou um bebê e preciso virar um pequena rolha de poço".
Isso tudo gerava insatisfação no nosso anteprojeto de mulher. Mas isso passou no dia e que seu pai trouxe um balão de hélio para Carminha "Olha o peixinho minha filha".
Muito impressionada com o objeto decidiu "Pronto, é isso. Vou flutuar". Por que não havia pensado nisso antes?
Lógico, que aos dois anos de idade ela desconhecia as nossas famosas leis da física. Seu mundo era Carminhocêntrico e sendo ela o centro de tudo, poderia fazer qualquer coisa - preciso ressaltar que também era um mundo pequeno e se restringia mais ou menos do início da rua até o quintal. Mas flutuar era o de menos. E assim, lá foi Carminha a flutuar pela sala.
A comoção foi instantânea "Maria, segura que a menina tá voando". Para os pais isso se tornou um problema, mas também foi só pra eles, porque ela achava aquilo tudo ótimo.
Com o tempo tudo se ajeitou, sua mãe colocou alças em todos os seus vestidos e sempre que precisava lhe dar banho ou comida puxava-a com um cabo de vassoura que tinha um preguinho na ponta.
Quando crescida jamais teve problemas com criancice de moleque, porque sempre que começavam a perturbá-la, flutuava até o telhado de casa. Quando teve sua primeira paixonite de infância e o viu dando um beijinho no rosto de uma menina chata da outra turma, Carminha passou o resto do dia no telhado do colégio. Foi preciso chamar sua mãe para conversar com ela "Carminha. Ô, minha filha. Desce pra falar com a mamãe, desce".
Carminha ainda flutuou durante muitos anos. Porém, um dia durante sua primeira aula de física o professor falou sobre a lei da gravidade. Ela prontamente protestou "Como assim? Quer dizer que nada pode simplesmente tirar os pés do chão e voar sem fazer esforço?" só para receber um atordoante "Não".
Depois disso Carminha nunca mais conseguiu flutuar, mas decidiu ter um filho e, mais importante, que o pobrezinho jamais teria de estudar física e que nunca lhe diriam que ele não poderia flutuar. Quem sabe o jovem até aprimorasse a técnica para um vôo mais refinado. Mas uma coisa era certa, Física jamais.

terça-feira, janeiro 17, 2006

Ela se Foi

Ela gostava de me morder. Isso ditava até o sexo, na verdade, principalmente o sexo. Uma vez, eu estava tão entregue que nem percebi o sangue escorrendo do meu dedo, quem parou tudo foi ela "Me desculpa". Fiquei surpreso, dei um sorriso "Nem doeu". Nesse dia deitamos um sobre o outro por muito tempo, como nos filmes. Não dá pra fazer isso sempre, os filmes mentem. Fazem parecer confortável. Não é, agora a gente já sabe.
Eu sempre colocava cogumelo na comida. Ela gostava. Lembrava Alice. Um dia até me fez prometer arranjar um tal de muscaria. "Vamos atravesssar o espelho. É mais divertido". Nesses dias, fazíamos na frente dele. Sempre mordiscava meu pescoço enquanto eu cozinhava. "É o aperitivo".
Ela diz que pareço uma menina. "Sua lésbica". Rolar na cama, bagunçar lençóis, parar em cima do travesseiro, se olhar nos olhos por um minuto. Prender ela pelos pulsos, roubar um beijo. Ela luta um pouco. Dificulta. Mas se rende pra desolação que eu sinto.
Quando chove ela nem me olha. Fica na janela. "Você ainda vai cair". Voa um sapato na minha direção. Depois voa outro. Fico quieto. A porta bate.
Fico lá sentado. Fumando um atrás do outro. A porta abre. "Me dá um".
"Eu te amo. Você me ama?". "Lógico que não. Você é burro demais.". Ainda sim ela me beija. A mordida nos meus lábios ainda lateja.
Um dia ela me manda embora. "Mas a casa é minha.". Ela pega o maço em cima da mesinha e bate a porta. Eu corro. Dou de cara com a porta. Tô sentado de costas pra ela.
E se ela chegar e não conseguir abrir a porta? Tá chovendo. Vou esperar aqui. Ela vai ouvir minha cabeça batendo na porta. Vai saber que eu tô aqui.

sexta-feira, janeiro 13, 2006

Nostalgia

Me dói a minha infância não ter sido bucólica, não que ela tenha sido ruim, mas foi urbana demais e tudo na cidade é um pouco banal. Todos tratam as coisas de uma forma um pouco blasé "Ah sim, Papai Noel. Esse homem não existe". Acho que isso acontece porque na cidade todo mundo acha que sabe mais, pelo menos mais do que quem mora no interior.
Eu preferia saber de menos. Desde bem cedo já sabia até de onde vinham os bebês. Preferia ter descoberto isso lá pelos 12 anos só, e morando em um lugar onde essa informação não fosse tão acessível, ficaria até orgulhoso de saber isso tão cedo. E, voltando ao Papai Noel, teria lhe escrito durante anos e jamais teria lhe chutado a canela.
Aos 12 teria várias cicatrizes nas canelas. Todas elas de cair de árvore quando era mais novo. Ainda aos 12, seria um exímio alpinista de árvores, porque teria aprendido a fazer isso durante muitos anos e com muitas quedas. Recusaria comer frutas que não fossem as que eu mesmo roubei do pequeno cemitério no fim da rua.
Um pouco depois disso, teria meu primeiro beijo, porque muitas pessoas já me disseram que, a despeito do que se imagina, no interior são todos bem assanhados. Esse beijo seria bem clichê, atrás da igreja, depois do catecismo e, de preferência, roubado. Sim, eu faria catecismo, continuaria não sendo um cristão exemplar, mas teria feito catecismo.
Invariavelmete eu viria para a cidade. Com toda certeza para estudar. Descobriria que somos pós-modernos e que isso entristece a muitos, que, no final das contas, estão sempre saudosos de uns 10 a 20 anos atrás, porque as coisas que aconteceram naquela época, foram muito mais interessantes do que o que está acontecendo agora.
Supreenderia a todos com a minha resistência na hora de tomar cachaça. Lógico, porque macho do interior que se preze bebe cachaça que nem água, como meu vô, que no último dos seus 70 e poucos anos ainda tomava sua garrafa diária de pinga. Ó céus, que saudade desse passado.

quinta-feira, janeiro 12, 2006

Sapatos Para a Vida



No perfil do orkut ela se descrevia assim “Sou um salto 15 em um sapato bico fino, posso ser charmosa, elegante e fundamental ou um desastre, apocalíptica, isso vai depender da pessoa e do local”. Aurélia tinha muitas coisas como: trinta e poucos anos, inteligência, sensualidade, cultura e blá, blá, blá, mas o que ela mais tinha sem sombra de dúvidas eram pares de sapato, passavam de 100 na ultima contagem. O que faltava? Um namorado. O motivo? Seus amigays poderiam citar 23, todos em ordem alfabética, mas segundo ela o que realmente influenciava sua solteirice, era a eterna busca do “sapato perfeito”. Essa sem sombra de dúvida não era uma justificativa comum, por isso ela fazia questão de explicar que tudo se resumia a uma frase “Me diz o que calças e direi quem és”. Isso para ela, era algo quase bíblico, todos aqueles que não fossem dignos, jamais alcançariam o paraíso, que ela havia cuidado muito bem durante sua vida. Ela era seu próprio São Pedro, às portas do céu, acolhendo os bem aventurados e mandando os ímpios para o limbo.

Essa mania de tentar desvendar a personalidade por trás da escolha do sapato começou com uma simples brincadeira, ela e seus amigays adoravam fazer seções de filmes pornôs protagonizados por rapazes de fino trato, por dois grandes motivos: um, eles adoravam a combinação XY, barriga tanquinho, bíceps trabalhado. Dois, ela adorava vê-los sempre de sapatos, porque aconteça o que acontecer, em todo pornô gay que se preze os homens sempre trepam com sapatos. A brincadeira era o seguinte, quando o casal aparecia na tela, eles davam pause - claro, até por que se eles fossem fazer isso no tempo em que os atores se encontram e começam a transar, só teriam míseros 4 segundos, a brincadeira perderia a graça e a câmera ia demorar muito para focalizar os pés de novo, daí já ia ser tarde para advinhar quem fazia o quê. Então, ela tinha de deduzir pelo sapato quem seria ativo, passivo ou se lá estava representado um casal de versáteis, e não é que ela sempre acertava?

Um exemplo eram os tênis. Se a cena era num banheiro de academia, ou na sala de academia ou em qualquer parte de academia, obviamente eles estariam de tênis, segundo ela tênis menos colorido sugeria um comportamento mais discreto, até introspectivo talvez o que acarretaria numa posição mais tranqüila, ele talvez estivesse mais disposto a receber “cores” em sua vida, enquanto o tênis muito colorido, além de indicar liberdade, sugere uma atitude agressiva de imposição, mas é preciso prestar atenção, quando os dois estavam com sapatos muito coloridos, outros detalhes deveriam ser considerados ou ali poderia estar incluída a tal da versatilidade. Detalhes mínimos como forma de amarrar e trançar o cadarço, quanto menos elaborada, mais preguiçoso, logo mais passivo. Bico arredondado poderia sugerir uma vontade de ter formas arredondadas pela frente, logo, ativo. Só teve uma vez que ela se recusou a dar seu parecer, foi durante um filme nacional – é notório que a pornografia nacional não é de boa qualidade. Porém, não foi à qualidade do filme o problema, mas um ator. Na primeira, que seria protagonizada por um rapaz loirinho e um homem mais velho meio careca. O que a deixou escandalizada foi o careca, afinal, ele tinha os dotes físicos perfeitos e a barba um pouco rala do jeito que Aurélia gosta, mas ao olhar para os pés, ela viu um pavoroso sapatênis azul, com listras de um verde berrante. Indignada ela se levantou e foi pra casa, precisava olhar um belo scarpan antes de dormir.

Com o tempo a brincadeira foi crescendo, crescendo e de repente ela passou a aplicar a técnica do desvendar da personalidade através dos calçados para seus namorados. O Mauro não deu certo por que usava sempre o mesmo tipo de sapato, ou seja, só mudava de cor, exatamente como ele fazia com o relacionamento deles, sempre o mesmo, certinho, metódico, chato, previsível, não, definitivamente ela não estava preparada pra isso. Mário só usava sapatos de couro iguais aos que usava no trabalho e como ela suspeitava, ele só pensava em trabalho, e esses, em geral, são ruins de cama. O Anderson coitado, ele que estava tão apaixonado, pensando em amor a primeira vista e a “mulher dos seus sonhos”, apareceu logo no segundo encontro com um sapatênis azul, liso, sem listras nem nada, mas ainda sim um sapatênis. “Por que você tem de ir? A gente nem fez o pedido ainda.”, “Querido, eu preciso ir pra casa, me em-be-be-dar e esquecer de você.”.Ela definitivamente não tolerava os sapatênis, além de ser feio designermente falando é sinônimo de complicação, ou se é uma coisa ou outra, homens de sapatênis são indecisos e com mal gosto. Pobre coitado, esse se desiludiu com as mulheres e acabou dividindo um apartamento com uma travesti chamada Monique, mas pelo menos ele foi feliz por um bom tempo e nunca guardou mágoas de Aurélia.

Ela de forma alguma era uma mulher fútil – tudo bem ela era um pouco sim – porém, muito mais que fútil, ela era neurótica e a sua neurose era com sapatos, que, convenhamos, é muito mais inofensiva do que ter teorias conspiratórias sobre alienígenas ou o serviço secreto norte americano, que além de tudo é algo deslocado geograficamente. Além disso, ela tinha ciência de sua própria neurose, tinha se tocado dela ainda na adolescência, quando ela e sua melhor amiga trocavam confidências sobre as suas fantasias sexuais. Como boa parte das meninas da sua idade, elas sonhavam com o famoso intruso que chega no seu quarto entrando pela janela. Entretanto, enquanto o da amiga, era um simples e sorrateiro jovem sedutor, que entrava quase como um ladrão qualquer pela sua janela aberta, o de Aurélia já era um homem, que nem tinha conhecimento de sutilezas, na verdade era meio bruto, e entrava no quarto a força, quebrando o trinco e escancarando a janela. De ladrão não teria nada e mesmo que quisesse levar algo não teria bolsos, pois entraria no quarto praticamente nu em pêlo, se não fosse pelo par de coturnos negros, brilhantes. A tomaria a força, bem selvagem, mesmo porque ele não precisaria de carícias para se excitar, já entraria no quarto excitado, ameaçador, viril. Ela de início se faria meio assustada, afinal ainda era um pouco jovem, mas depois se entregaria sem pudor. Quando viu a expressão de espanto no rosto da amiga, percebeu que havia algo de chocante em sua revelação e depois se deu conta da sua predileção pelos homens só de sapatos, eram bem mais úteis assim. Ela já tinha também a sua coleção de sapatos e pôde perceber o quanto este, que para muitos é um acessório, para ela era um item fundamental.

Foi num dia 31, ela não lembra o mês, as lembra que era dia 31, que o inesperado aconteceu. Ela viu um rapaz, com certeza ainda na casa dos vinte anos, passar pelo escritório, usava All Star preto, bem desgastado e meio amarelado, assim como eles têm de ser. Disseram que ele era o novo estagiário. Um dia ela estava batendo com a caneta no seu borrão e olhando para baixo, quando viu um belo par de democratas de couro, imaginou logo que levantando o olhar teria o Gianechinni a sua frente, mas era só o novo estagiário. Os meses foram passando e como não poderia deixar de ser, eles começaram a trocar palavras, fosse na máquina de xerox ou na cafeteira. Nessas ocasiões ela sempre direcionava o olhar um pouco pra baixo, fingindo uma certa timidez, mas com o real intuito de olhar os pés, ou melhor, os sapatos do rapaz. Sempre chegava a duas constatações: Uma, ele está sempre impecável; outra, ele deve ser gay.
Isso foi só mais um motivo para criar um laço de amizade com o rapaz – Vicente, esse era o nome, e ela adorava esse nome. Uma noite, eles foram a uma festa a fantasia, ela não teve pudor algum na hora de se fantasiar. Era a dominatrix clássica, chicotinho, roupa de vinil, máscara borboleta nos olhos, e um belo par de botas de vinil, dificílimas de calçar. Quando chegou, ele foi o primeiro a ir cumprimentá-la, vestido de militar, com boné e até camuflagem no rosto, mas o que a deixou arrepiada de verdade, e o arrepio ficou claro a todos, porque sua roupa deixava muita pele à mostra, era o coturno negro e brilhante, exatamente o mesmo dos seus sonhos adolescentes. Passou o braço pelos ombros dela e a mão em seu braço como se a aquecesse “Você tá linda!” ela respondeu com malícia na voz e no olhar “Vocês também estão” terminando a frase olhando ele de cima pra baixo.
P.S: Sim o texto está enorme, então parem de preguiça pq eu e SIC não vamos diminuí-lo e ponto.
P.S2: SIC, minha gostosa, é um prazer cada vez maior escrever com vc. Para os desavisados esse texto tb está no http://sic8.blogspot.com o blog mais legal do mundo

domingo, janeiro 08, 2006

Complexo de Édipo

Há 12 anos atrás era sempre a mesma rotina, eles iam ao supermercado na quinta à tarde e no sábado bem cedo à feira. Ele empurrava carrinho e conferia a lista, ela escolhia as verduras e frutas - ele nunca teve jeito para escolher verduras nem frutas. Quem levava tudo para pesar era ele também, afinal isso é tarefa de homem e gostava de ouvir "Você é o homem da casa".
Em algum ponto, ele não tem certeza de quando, mas devem fazer pelo menos uns 5 anos, ele não quis mais fazer isso. Ela não mudou muito, ainda se ocupa com o jardim nos domingos, mas eles não faziam mais nada juntos.
Ele passou a sair sozinho ou com os amigos, nunca mais com ela. Chegava em casa, lhe dava um beijo na testa e dizia um "oi" meio seco, havia se tornado uma pessoa meio bruta, não com ela, com ela era impossível. Mesmo assim ela notou a mudança, "Você não me abraça mais".
Começaram as brigas, espaço sempre é um problema, e ele sempre precisou de muito. Acabaram só tendo tempo um para o outro de manhã depois do café, não falam enquanto comem. Se falavam no carro, reclamavam da vida, dos outros, da política, em geral reclamavam. Depois se despediam com um beijo no rosto "Tenha um bom dia".
Se não faziam mais nada juntos, ele precisava fazer outras coisas - não que fosse culpa dela. A única coisa que ela dizia era "Te cuida, por favor". Ela também embruteceu um pouco com o tempo:
- Troca essa lâmpada pra mim.
- Por quê?
- Porque isso é serviço de homem. Você é o homem da casa, não é?
Ele sorri. Ainda gostava de ouvir isso.

terça-feira, janeiro 03, 2006

Eu Falo

"Ah, eu dei uma ida à beira do rio" você me diz com desfaçatez, como seu eu não soubesse o que isso significa. A gente discorda sobre a beleza do cãozinho sarnento, eu continuo acreditando que aquele tom avermelhado na pele dele deixava-o com cara de turista alemão. Esqueci que eu ia te contar que eu e uma amiga costumamos xingar nossos autores favoritos, mas que eu não consigo fazer isso com a Maria Lúcia, ela tem uma inocência que me impede de xingá-la . Acho que esqueci disso quando parei pra te olhar. Acho também que te olho pouco.
Engraçado como o teu entusiasmo pelo rock não me encanta, mas me dá vontade de te arrancar um beijo, não que eu preciso tomá-los, mas me diverte fazer isso. Indisfarçavelmente felizes. É isso que penso todas as vezes que você me pega sorrindo sozinho ou olhando para o nada. Pronto, satisfiz a tua curiosidade.
O lacônico precisa de alguma forma para se expressar. Então, estou tentando ser o mais claro possível. Não estou me saindo muito bem, não é? Esse texto ia ser uma comédia sobre voltar as aulas, mas daí tinha de entrar você. Mas quando entrou você, não teve espaço para mais assunto algum. Faltaram as piadas. Você arruína a minha ironia de "homem decepcionado com o pós-moderno". Indescritivelmente felizes. Foi isso que me deixou sem armas.
Imagino a Sue me falando "deixa de ser leso, abestado!" porque eu vou reclamar da minha própria pieguíce. Eu tenho um blog inteiro que comprova as minhas sandices, você já as conhecia todas. Mas passei por cima de todas elas e até paguei minha língua por ter dito no passado "Não se ama em tão pouco tempo".