terça-feira, dezembro 26, 2006

Ante-Véspera

Aquilo a incomodou o dia inteiro, aquela possibilidade. "Não era amor, apenas esperanças de amor". Isso mudava tudo. Ela no final das contas então não conhecia nada, não estava pronta para nada. Era terrível, uma constatação terrível. Ela não sentira nada verdadeiro até agora. Mas como saber se era ou não amor? Que lhe diria se era ou não?Como essa outra pessoa poderia saber com certeza se o que ela também havia sentido não era só algo próximo de amor, mas não amor em si? Isso complicava tudo, justo para ela que só queria que tudo fosse um pouco mais leve.
Decidiu comprar um livro, mas não um qualquer, precisava ser ficção científica, de preferência algo bem longe de amor. Não estava preparada para pensar nisso de novo. Quando não se quer pensar em determinado assunto, nada melhor do que se evadir dele. Enquanto andava se percebeu falando sozinha, e já fazia semanas que falava sozinha.
Era dia 23 de dezembro, a livraria quase decente mais próxima era a do shopping. Seria um inferno, ela tinha certeza. Muita gente desde a rua, muita gente pra atravessar, muita gente para entrar, muita gente para sair. Nem precisava olhar do alto para compará-las a formigas. Odiava insetos, odiava mais ainda se imaginar parte deles. Mas era preciso esquecer "aquele" assunto. Nisso as formigas foram de grande ajuda.
Andava e falava sozinha, tentando ignorar as formigas. Por um momento se permitiu olhar para elas. Quanta feiúra, eram todas feias, muito feias. Todas procurando inutilmente parecer um pouco bonitas e, talvez por isso, eram muito mais feias do que imaginavam. "Vocês não percebem que são todos horrorosos?" as formigas pararam por um instante, "Feios, todos muito feios. V-O-C-Ê-S S-Ã-O M-U-I-T-O F-E-I-O-S". Formigas atônitas, ofendidas, logo elas tão bonitas, quem era aquela maluca? "Minha senhora, vou ter de pedir para senhora se acalmar", "Você é o mais feio, com esse uniforme branco. Acha que você inspira alguma autoridade? Com toda essa feiura saindo pelos poro?", o segurança vermelho, mais de vergonha do que de raiva,tentou se aproximar "Minha senhora vou ter de pedir para senhora ir se retirando deste shopping, vou lhe levar à saída". Que absurdo aquela criatura além de feia, usava gerúndio e queria pegar nela "Não toca em mim e não não usa gerúndio comigo".
Precisou de mais dois guardas para conseguir botá-la para fora do shopping "Mas eu ainda não comprei mei livro. Eu quero comprar meu LIVROOOO". Se debateu o mais que pôde, mas era magra, ombros estreitos de mulher magra, tudo de mulher magra que só consegue se debater, e eles além feios eram homens, grandes, truculentos. Ainda tentou entrar duas vezes, mas os três ficaram ali na porta. Passou o dia inteiro reclamando do acontecido, nem pensou mais no "assunto"

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Quero Ser Caio

Tem uns autores que gritam comigo. Sim, gritam, o que eles escrevem me impacta de uma forma tão grande que é como se gritassem. Clarice com certeza é uma, mas no caso dela acho que isso acontece com todos. Agora o Caio é diferente, ele é um querido, sempre presente, sempre me contestando. Que contestando nada, ralhando mesmo, com uma voz afetada, nunca a ouvi, mas sempre imagino que fosse bem afetada "Deixa de ser Irene bofinho, a onda é ser Jacira". Sempre com cigarro na mão, acho que minhas vontades repentinas de fumar vêm dele, de beber vodka até cair também, acho que simpatizo com ela por causa dele. Sempre tem uma frase, as vezes textos inteiros, dele que eu gostaria de ter escrito. Não tenho a ousadia que ele tinha, toda vez que me pego pensando isso, ele invade meus pensamentos ralhando, mandando eu ir viver a vida. Acho que é porque eu não queria a minha vida, eu queria a dele, final trágico e tudo, com direito a texto dizendo "Eu ainda não morri, porra". Acho que me apeguei mais a ele porque ele grita comigo não só pelos textos, mas em pessoa. Contato é uma coisa muito importante.

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Marisa (S&R Letras)

Ela acordou decidida, hoje era o dia de conquistar o boybem. Maquiagem leve, vestido, óculos escuros à Lady Vengeance, brincos e é claro salto. Se tivesse algum, colocaria um chapéu, completaria o efeito desejado. O boybem já foi escolhido, era apenas questão de atraí-lo, ele já sabia o quanto ela era inteligente, divertida, simpática, só faltava perceber o quanto ela é bonita. Nada que um ar blasé e uma boa produção não dessem jeito.
Vive la Fête no som do carro, pronto, trilha sonora. Agora era percorrer a cidade a caça do boybem, do seu boybem. Já sabia onde poderia encontrá-lo, na verdade sabia RG da vítima, sabia que com toda certeza naquela hora ele estaria tomando vinho com alguns amigos em algum lugar charmoso da cidade. Estacionou. Procurou. Achou, agora era linha reta no alvo, olhar penetrante, um pé na frente do outro pro andar ter mais cadência, óbvio sem exageros. Gostava de pensar que percorria muito bem a linha da sensualidade sem nunca pular por lado negro da força, a vulgaridade. Sorriu, e quase acertou, ele estava bebendo vinho sim, mas sem os amigos. Estava no balcão com uma garota. Ela teria de desculpar-lhe, mas iria roubar o boy.
A única coisa que ela precisava era um olhar. Senta numa mesa pra decidir o que fazer. Quando está tirando os óculos escuros um garçom deixa cair um copo, desviando todos os olhares – esse é um daqueles dias em que nada podia lhe atrapalhar. Quando as pessoas estavam voltando ao que estavam fazendo seus olhares se cruzaram. Suas mãos ainda seguravam os óculos, deu um meio sorriso só com os lábios e acenou de leve. Assim que a viu não podia deixar de falar com ela. A outra moça nem tinha chance, não naquele dia:
___ Posso sentar?
___ Claro - Seus olhos tinham um certo brilho, devia ser por causa do desejo.
___ Estás bebendo o que?
___ Não sei, um chileno que o garçom recomendou.
___ Me veja o mesmo que ela, por favor.
___ Precisamos brindar.
___ Bem, a que vamos brindar?
___ A nós!
___ E a “ocasião” é importante?
___ Somos nós, eu decidi que de hoje não passa, eu te quero e vim aqui exatamente pra isso, pra te trazer de uma vez por todas pra dentro de uma parte da minha vida da qual tu só fazes parte na minha cabeça.
___ Tenho escolha? - Ele sorri com o canto dos lábios e lança o olhar para baixo.
___ Ainda resta dúvida? Sabe quantos no mundo podem se dar ao luxo de falar que já me tiveram aos seus pés? Dois, contigo três e aprendi não deixo mais passar, acordei decidida a te ter.
___ Já me tens, somos amigos.
___ Eu quero mais. Não, não é “mais” a palavra certa, eu já tenho muito de ti, eu quero algo diferente. Além disso, amigos eu já tenho de sobra, você eu quero pra outras coisas.
___ Essas outras coisas ao que me constam não são feitas entre inimigos.
___ Eu quero essas coisas só comigo, quero também tardes de mãos dadas pela rua, quero rotina compartilhada, quero momentos imbecis infantilizados, quero a preferencial das tuas escolhas.
___ E o que eu ganho com tudo isso?
___A certeza de divertimento ou a devolução.
O silêncio e uma olhada para o lado, o que significaria isso? Um gole no vinho, voltou o olhar pra ela, e a perguntava continuava, o que significa isso?
___Estou assustado
___Não era esse o objetivo, na verdade só não queria deixar passar de hoje, essa situação está sendo protelada há algum tempo, sou impaciente, como meu amigo tu sabes disso.
___E como teu amigo eu também sei que tens uma péssima mania de vilanizar os que não te obedecem.
___Isso significa que a tua resposta é não? Ela já devolveu os óculos para os olhos, virou a cara e deu uma golada poderosa no chileno que descia na garganta como se fosse uma dose de cachaça que custou 0,50 centavos.
___Eu falei alguma coisa? Na verdade me deixaste falar alguma coisa, alguma vez?
___ Não acredito que vamos ter uma “DR”, sem nem ter começado o “R”.
___ Isso não é uma discussão, é uma constatação, não me deixas ter escolhas, és como um mar, ao mesmo tempo em que fascina, dá medo. Nunca sei o que realmente fazer.
___ Eu vilanizo os desobedientes e tu os incompreensíveis. Deu uma risada, tomou mais um gole e deixou o clima da conversa mais leve.
___ Quer saber honestamente o que está passando pela minha cabeça?
___ Com certeza, com mais certeza até de que eu sabia que você ia deixar a menina do balcão pra vir sentar comigo.
___ Você me assusta. Não é bem isso, é que... a idéia de gostar de você me assusta...
___ Que absurdo. Você tem medo de mim?
___ Não é isso, calma.... é que a única coisa que passa pela minha cabeça é um gostar irracional, daqueles que faz com que você não pense em outra coisa... e isso me assusta.... muito.
___ Sabe, eu vim decidida a sair dessa eterna sala de espera. – Ela fecha os óculos – Tô cansada de ter paciência, eu te queria agora, “Mas você tem medo de me perder como amiga” também não é?
___ Essa frase é velha, né?
___ Muito, vai, a menina ainda ta no balcão. Vou dar mais um tempinho aqui eu e o “olhar de fotografia de verão”.
___ Mas...
___Vai cão, antes que eu me emputeça.
Esqueci de dizer, os textos do S&R Letras são escritos por mim e a Dra. Sexy SIC e são postados tb em http://sic8.blogspot.com

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Pedido

A coisa que eu mais queria dessa vida nos últimos tempos era leveza, mas é o tipo de coisa que ela tem o prazer de negar, é a grande ironia dela para conosco. É sobre as coisas mais simples que nós ficamos nos perguntando "Porra, por que eu não tenho só isso?", vai ver que é pedir demais sim. Além do que, pedir pra quem? Porque parece que todo mundo ao meu redor não acredita mais em Deus, um deles nem sabia que eu acreditava. Foi uma cena de espanto bastante autêntica "Mas... VOCÊ acredita em Deus?!". Eu devia só ter dito "sim", apesar de ultimamente ele ter sido só aquele cara que me nega as pequenas coisas, em vez disso debati o assunto. As vezes eu acho que precisava de provas mais contundentes ou de problemas psicológicos mais graves, como esquizofrenia, que me fizessem ter mais certeza, mas sempre tem alguém pra falar sobre fé, geralmente de uma forma bem tacanha. Também tenho de confessar que ando bem chato, alguns anos atrás eu até daria um sorriso pra eles. Não sorrio mais, não pra eles. Mas continuo acreditando. Ah, esse foi o centésimo texto do meu blog, eu também gostaria de ter mais coisas a dizer. Será que já sou leve e não sei?

sábado, dezembro 16, 2006

Rascunho

Outro dia enquanto lia uma crônica tentei recriar a cena na minha cabeça. Percebi uma impossibilidade minha, não que não conseguisse imaginá-la, mas ela era incompleta, era uma cena em duas dimensões apenas, nada tem volume. Tentei lembrar de alguma outra coisa, percebi que minhas lembranças poderiam até mesmo ser sistematizadas, lembraças de cheiros, de tato, visuais, mas juntar tudo parece impossível. As vezes tudo começa no cheiro, me leva a uma imagem, mas assim que ela chega até mim o cheiro já se foi. As vezes era só um gesto. Fico desesperado tentando juntar tudo. Passa tudo como se eu fosse um espectador, uma tela de cinema. Bato um pouco na cabeça pra ver se tudo cai nos seus devidos lugares. Inútil. Incompletude. Me pergunto se sou o único que experiencia as lembranças dessa forma. É terrível não saber se alguém é capaz ou tão incapaz quanto você. É um problema de companhia.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Respingos

Ele colocou a cara pra fora da janela, a chuva caia naqueles pingos que mais parecem navalhas. Lembrou de algum filme ou música que dizia "blame it on the rain", mas não tinha muito o que culpar a pobre da chuva, o maior dos problemas da sua vida era simplesmente não gostar muito dela. Se afastara de todos, amigos, família, relacionamentos são custosos. Sempre imagina o Caio com o turbante que usava naquele conto, excêntrico, afetado, lhe brigando, mandando ir viver a vida. Muito complicado viver a vida se você não gosta dela, por isso tinha se afastado, todos com tantos problemas e acontecimentos, ligados demais a vida. Resolveu ficar ali, como sempre esteve, meio quieto, descobriu que os outros provavelmente nem se importavam, porque ninguém notou quando ele parou. Tudo andava mais acelarado enquanto ele ficava parado, todo mundo era protagonista do flash da década de 90, aquele ator não conseguiu mais fazer nem um papel de destaque. Qual era o nome do ator do flash? Só lembrava que ele estava velho já, fez papel de pai em outro seriado. Pessoas precisam pagar as contas, ter empregos das 9:00 às 17:00. Se passasse por ele, provavelmente ia passar correndo também. Enxergava tudo embaçado, a chuva de pingos de navalha já tinha lhe encharcado o rosto, a cidade inteira agora lembrava o flash. Era bonito de se ver.

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Ana me Contou

Ele ia para o trabalho como todos os outros dias. Marcava o ponto às oito, tomava o café e travalhava até às cinco da tarde. Quando chegava em casa, ele não havia dito a ninguém, mas ela não estava mais lá. Arrumava tudo. Colocava o porta retrato com a foto do casamento, o melhor paleto e esquentava o jantar. Numa das vezes o telefone até tocou, mas era sua irmã. Uma vez a campainha tocou, era uma pedinte. Nunca era ela. Ele nunca desistiu, espereva todos os dias. Eles eram muito diferentes, era o que todo mundo dizia, mas ele sabia que não era preciso ser compatível a cada segundo do dia, bastava que o entendimento deles sobre amor fosse igual. E era.

sexta-feira, dezembro 01, 2006

Hoje

Ela desvia o olhar da tv, desce da poltrona e se dirije a sua mãe:
- Mãe, eu preciso ir no médico.
- O quê? - distraída fazendo o café, demorou um segundo pra entender o que lhe foi dito - Médico? Por quê?
- Acho que eu tô morrendo - ela falou como se estivesse comunicando uma descoberta dessas de criança, como algo aprendido na aula de ciências, que nunca tomam a devida proporção quando contadas a um adulto.
- Que isso filha? Por que você acha uma coisa dessas?
- Eu sei. É linfoma. Tenho entre 3 e 4 meses de vida.
- Que absurdo. Já pro teu quarto, você está de castigo - algumas lágrimas rolaram até chegar no seu queixo - Você tem 10 anos de idade, crianças de 10 anos de idade não têm linfomas.
***
- Está bem claro pra mim que sua filha está deprimida.
A garotinha solta a mão da mãe e levanta da poltrona, num daqueles momentos em que crianças tentam parecer adultas e são até razoavelmente bem sucedidas:
- Você é um gênio.