sexta-feira, março 31, 2006

12 Andares

Por acaso eu trabalho do décimo segundo andar de um prédio:
-Tchau Ana.
Me chamar Ana também foi obra do acaso, minha mãe estava sem idéias no dia e viu uma pichação assinada com esse nome. O fato de eu não cair toda vez que olho pra baixo pelo batente da escadas também é acaso:
-É, seria fatal.
O elevador chega e eu cumprimento o acensorista. Será que um dia eu deixo ele me atacar dentro do elevador? Do jeito que as coisas estão, eu quem iria agarrá-lo. Mas eu não sou pra ele, não sou pro bico dele. Mulher de fino trato não é pra ele, mas é impossível não imaginá-lo me apertando contra o espelho do elevador, aquele suor horrível de gente pobre, mãos cabeludas e mal tratadas arrancando minha calcinha, me penetrando de forma furiosa sem nem ao menos se dar ao trabalho de baixar sua calças. E eu? Eu iria levantar a cabeça pro teto pra não sentir o cheiro dele. Teria de ficar olhando as pás do ventilador rodando. Assim que o elevador chegasse ao térreo diria um "Tchau fulano".
Descobri faz algum tempo que sou burra, quase um bicho. Quase não, pior que um bicho. Não aprendo nada, nem por condicionamento, até os ratos aprendem levando choque, mas eu sempre aperto o interruptor da cozinha e ele sempre me dá o mesmo choque.
Se um dia eu cair de verdade, espero que 12 andares dêem pra lembrar toda minah vida.

quarta-feira, março 15, 2006

O Guarda-Chuva de Bolinhas

Naquela década, fazer a travessia do atlântico em barcos não era algo obsoleto e eu ainda não confiava em aviões. Era inconcebível algo que voasse sem bater asas. Além disso, ter alguém esperando no porto tinha um clima de romance inestimável. E era assim que eu queria que ela estivesse, me esperando no porto.
Lá de cima eu iria avistá-la. Claro, separada da multidão, ela simplesmente não se ajustaria a eles, não teria aquele sentimento de união que cresce nas pessoas saudosas e as faz solidarizarem umas com as outras. Deslocada, mas ainda sim, ou quem sabe exatamente por isso, o centro das atenções.
Meu deleite começava sempre por baixo, um scarpan preto. Pernas bem torneadas e brancas, escondidas pela metade, mas a fenda lateral da saia sempre mostrava um pouco mais. A saia acentuava o relevo dos quadris. A blusa branca um pouco aberta mostrava algumas sardas e levemente o contorno do seio esquerdo. Óculos escuros grandes escondem um pouco da beleza, mas acrescentam um ar de mistério. O guarda-chuva é a peça mais curiosa, preto com bolinhas brancas, é antigo e quando não está protegendo da chuva, está protegendo do Sol. Sempre a indaguei onde diabos havia encontrado um guarda chuva de bolinhas "Um camelô na esquina da minha casa me vendeu".
Mentira, ela sempre mentiu pra mim. Mas era só um guarda chuva, então não fazia diferença. Me incomodava pensar que ela poderia sumir e eu não teria como encontrá-la. Se tinha marido e filhos eu não sabia, tão pouco me importava, pro diabo com o corno e os fedelhos remelentos, ela estava comigo.
As vezes eu até tentava arrancar alguma coisa "Eu te faço o homem mais realizado que você conhece, não é mesmo?Então você não precisa de mais nada, precisa?". Não precisava mesmo, não queria um casamento que a deixasse gorda e mal-amada, nem filhos sugando a vida dela pelos seios. Ela era minha da forma mais egoísta que eu já consegui amar alguém.
Precisava me conter todas as vezes que estava entre suas pernas, para que ela não conseguisse perceber a minha angústia misturada com o gozo. Angústia pela necessidade de união de uma forma que o corpo não consegue fazer, uma ligação do ser com outro ser, uma necessidade brutal da pele dela fundida à minha. Fazendo com que todo gozo seja suado, meio desesperado, meio animalesco, muito, mas muito bom mesmo.
Tenho certeza que quando descer do navio ela vai estar me esperando. Vai largar o guarda-chuva e vai correr na minha direção. Pular no meu pescoço e eu vou segurá-la pela cintura. Vai me dar um beijo no rosto como provocação. Movimentos sedutores calculados, só pra me fazer sentir remorsos pela última vez.
Desci do navio. A qualquer momento ela vai me surpreender. Essa multidão maldita que não sai da minha frente. Eles demoram a dispersar, vão para as suas casas cambada de inúteis, corja da classe média. Já é quase noite. Onde será que ela se meteu? Eu não fiz por mal, ela sabe disso. Iríamos passar a noite juntos, era só pra ela dormir um pouco.
Vou me sentar, vou esperar mais um pouco. Você vai ver amor. Estou aqui, contrito, completo, tudo em mim é seu "Todas as minhas flores, até a erva daninha. É tudo seu". Lembra dessa frase? Me desculpa?

quarta-feira, março 08, 2006

Desligado

O telefone tocou e ele correu para atender. Disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça:
-VAI PRO INFERNO.
-Anh?Alô?
-Não me escutou, não? Tá surda? Vai-pro-in-fer-no.
-Quem tá falando?!
-Pensa que eu tenho medo, é? Vai pro inferno. É o Raphael quem tá falando aqui.
-Raphael?! É do 32468995?
-Ah, não. Aqui é 32468994.
-Ah, desculpa, foi engano.
-Puxa, não. Quem tem de pedir desculpas sou eu moça.
-Tá, não se preocupa não - ela disse numa voz pacificadora.
***
Ninguém desligou. Então ela resolveu continuar:
-Posso te perguntar uma coisa?
-Ah, po-pode claro - muito desconcertado.
-Por que você tá tão chateado?
-Quer mesmo saber?
-Fiquei curiosa - Ele imaginou que ela devia ter dado um sorriso ao dizer isso.
-A verdade é que nem eu sei. Eu ando meio deprimido sabe...
-Ah, sei. As vezes fico meio deprimida também.
-Mas é por qualquer coisa. Ontem por exemplo, fiquei depimido na aula. Não tinha nada demais, foi só uma aula chata. Mas daí comecei a olhar pra janela, já não ouvia mais nada ou umas frases desconexas da professora.
-Eu fico assim quando chove. Ontem tava chuvendo às dez da noite, eu tava no ônibus, voltando pra casa. A ra tava tão linda sabe, chuva, luz amarela dos postes, árvoes. Me desabei em lagrimas. Tava praticamente sozinha no ônibus, o trocador ficou me olhando com cara de taxo.
-É, mas chuva é algo que deprime mesmo. Que você tá ouvindo aí?
-É Placebo, o novo. Esqueci o nome.
-Esse cd também me deixa deprimido.
-Ai, mas você também é sensível demais.
-Eu estou num momento ruim, dá licença?!
-Quer saber? Não dou não. Acorda garoto. A vida de todo mundo é uma merda, não é só a sua não.
-Era só o que me faltava. Uma inepta, que nem discar sabe, me dar lição de moral.
-Ora, quer saber duma coisa? Vá pro inferno, isso sim.
-Não. Olha, desculpa de novo. Sabe, é que a gente sempre acha que os nossos problemas sempre são maiores que os dos outros.
-Acho que é por que eles são nossos né?
-Você me desculpa?
-Tá, tá desculpado. Mas olha, eu preciso mesmo desligar, é que eu tenho de fazer uma ligação importante pro 8895.
-Não era 89?
-Hi, é mesmo, já ia ligar errado de novo.
-É - dessa vez ela imaginou que ele sorria do outro lado - Posso te pedir uma coisa?
-Claro.
-Me liga amanhã?
Ela soltou um suspiro como se estivesse decidindo, até que respondeu:
-Tá, eu ligo sim - e ele imaginou mais uma vez que ela sorria.

quinta-feira, março 02, 2006

Asas

Dessa vez eu lembro de tudo com exatidão. Carla nasceu no dia 2 de dezembro de 1987 às 2 da manhã, na cidade de Gramado. Sua mãe havia se mudado faz pouco tempo e ainda se espantava com o frio e se maravilhava com as flores que cresciam nos canteiros da estrada. Costumava até bater fotos das flores.
Supreendou a todos por ter nascido 1 semana antes do esperado, mais ainda por ser um bebezinho lindo, não tinha aquela cara de joelho bem característica de recém-nascidos, mas principalmente por ter nascido com um par bem curtinho de asas. Sim, asas. Como as de passarinho, brancas com manchas de marron, mas bem pequenas.
De início isso foi terrível pra sua mãe, que além de ser mãe de primeira viagem estava completamente despreparada para ter um criança com asas. Não que houvesse muitas mães preparadas para isso, mas alguma no mundo deveria estar. Infelizmente, esse não era o caso de Dona Estefana, que além de aprender a trocar fraldas precisou abrir buracos em todo o enchoval para que as blusas não amassasem as asinhas.
Ela estava preparada para a parte da educação, ensinar a criança a dizer "por favor", "obrigado", usar o peniquinho de plástico e tudo mais. Porém, como não havia precedentes de outra criança com asas no mundo, de fato Carlinha era única, Estafana fez o lógico, tentou ensinar a menina a voar "Vai filha, bate as asinhas pra mamãe".
O lógico nem sempre é o mais adequado a se fazer, e isso se mostrou de forma bastante frustrante para Carlinha e sua mãe, a primeira por acreditar estar decepcionando a segunda e a segunda por não se achar boa o suficiente para educar a primeira.
Elas moravam em um apartamento no quinto andar, de frente para o nascente, exatamente como sua mãe queria. Logo quando começou a andar, definiu a janela como seu local favorito da casa, sempre tentava escalá-la para ficar olhando o céu, o problema é que sua mãe não aprovava muito a idéia "Não minha passarinha, você não voa. Então tem que ficar aqui em baixo". Mas ela sempre daa um jeito de subir e ficar sentada na janela.
Durante alguns anos a criança foi alvo da mídia e dos cientistas, algumas coisas sensacionalistas sairam em revistas e exames de sangue e genéticos foram realizados. A mídia foia primeira a perder o interesse pela criança que se tornou notícia velha "Daqui uns dez anos a gente volta e mostra como ela está depois de crescida. Quem sabe juntamos ela com o bebe da Johnson e a primeira criança de proveta" . Para os outros algo simplesmente inexplicável, que surgiu do nada e provavelmente não iria se repetir.
O grande desafio mesmo era começar a escola. Para a menina aquilo era amedrontador, haveria um monte de outras crianças, mas nenhuma seria igual a ela. No primeiro dia a única amizade que ela conquistou foia de Ana Maria, uma linda ovelinha amarela feita de tricô, um cachecol verde também de tricô, com olhos amendoados e tristonhos, um rosto mais expressivo que uma boa parte das pessoas naquela escola. As duas simpatizaram de imediato uma com a outra.
Como era de se esperar, as outras crianças, passado o susto de ver uma menina com asas, também tentaram faezr amizade com Carlinha e descobriram que, além de ter asas, ela era uma garota muito inteligente e, muito mais importante, era muito legal. Todas com exceção de uma, Raquel, uma menina de cabelos escorridos e olhos malvados.
Com o tempo a sala toda acabou fazendo amizade com a ela e, consequentemente, com Ana Maria. Desconhecendo que as crianças, as vezes, também são más umas com as outras, Carlinha tentou se aproximar de Raquel no final da última aula da segunda feira, mas essa que, a bem da verdade, era má com as outras crianças o tempo inteiro, lhe lançou um daquele olhares malvados e disse "Sai de perto de mim. Você é um monstro. Você acha que os outros gostam de você? Eles têm medo de você. Monstro!". Carlinha sentiu um vento frio passar por todo seu corpo e parar no coração, ele bateu mais depressa, talvez para compensar a sensação de gelado que se fez sentir.
Nesse dia Carlinha foi cabisbaixa o caminho inteiro até a sua casa e era um desses dias em que nada parece dar certo, porque nem poderia ficar com a sua mãe que precisava trabalhar até mais tarde, quem ia cuidar dela era Dona Mercedes, uma velinha que dormia muito depois do almoço.
Assim que a velinha dormiu, Carlinha foi pro seu local favorito da casa. Ficou encarapitada na janela igual a um passarinho, abraçando Ana Maria que lhe havia sido dada de presente pela professora. Foi justo nesse dia, provavelmente o mais mais azarado dos poucos que ela teve, que ocorreu justamente o que sua mãe mais temia. Um vento muito forte bateu e Carlinha perdeu o equilíbrio. Caiu com Ana Maria nos braços. Antes de chegar ao chão perguntou para a ovelinha o que fazer, mas esta, que sempre fora uma ovelha, não sabia.
O que ninguém sabia, ou pelo menos Dona Estefana e Carlinha não sabiam, é que quando algo tão extraordinário como uma criança nascer com asas acontece, várias outras coisas extraordinárias se seguem. Assim, antes de alcançar o chão, Carlinha simplesmente abriu suas asas e as bateu. A verdade é que ela nunca havia precisado voar antes, mas agora voava.
Voou pra bem longe. Ninguém prestou atenção numa garotinha voando, porque ninguém tinha tempo de olhar pro céu. Somente quando Dona Estefana chegou em casa e acordou de forma desesperada e quase matando a velhinha do coração que alguém deu falta de Carlinha. Durante muito tempo su amãe a procurou. Ela teve outra filha, essa não tinha asas, mas era tão especial quanto a primeira. Sua mãe sempre lhe mostrava fotos da irmã mais velha, contava o quanto ela era especial e como as duas se dariam bem.