terça-feira, fevereiro 07, 2006

Homem Formiga

As minhas horas no ônibus geralmente são gastas lendo, mas quando não tenho o que ler a coisa desanda. Em um desses dias em que estava sem algo pra ler, comecei a divagar em cima de um diálogo, onde uma moça falava a um homem que ela não gostaria de ter com ele um momento de formiga, porque hoje em dia nós sempre temos momentos de formiga, onde cruzamos com outro ser humano, olhamos e passamos pelo lado. As formigas pelo menos trocam sinais químicos quando se cruzam e podem dizer uma a outra "vai em frente, tem comida pra carregar" ou "pega mais pra esquerda pra conseguir contornar o cocô de pombo". Nós não, nós os seres humanos passamos direto um pelo outro. Nesse meio tempo subiu uma garota no ônibus que tinha os cabelos cor-de-rosa lindos, lembrei que eu já havia escrito uma estória sobre uma garota de cabelos cor-de-rosa e ali estava ela, vivinha da silva, era ela, eu tinha certeza. Essa era a minah chance de ter um momento humano, deixar de ser formiga. Não consegui, ela passou por mim e não falei nada, continuei formiga. Mas um dia desses me ensinaram que a eucronia é o estudo sobre como as coisas poderiam ter sido. Então se eu tivesse falado com ela, as coisas teriam sido mais ou menos assim.
Quando ela passou para a parte de trás do ônibus, levantei e fui sentar ao lado dela. Dei uma cutacada no ombro, não no ouvido como eu costumo fazer com meus amigos, mesmo ela sendo uma amiga, ainda que não estivesse a par disso:
-Oi. Você não me conhece, mas é que eu escrevi uma estória sobre você.
Ela provavelmente faria uma cara de constrangida, daí eu precisaria me explicar:
-Na verdade é mais um relato sobre o teu cotidiano. Você mora faz alguns anos com um travesti, é uma jornalista e dá todos os créditos da sua habilidade literária ao seu décimo grau de parentesco com a Clarice Lispector. Você mora com um travesti, não mora?
Como o constrangimento já teria passado.
-Puxa, não, eu não moro com uma trava, mas eu adoraria ter um décimo grau de parentesco com a Clarice Lispector.
-É, eu devo ter me enganado. Até porque você não usa calça jeans, tá sempre de saia.
-Não, não. Sou eu mesma, é que as saias não secaram por causa da chuva.
-Ah tá - daria um sorriso logo em seguida.
Notei também o lacinho amarelo que ela usava. Não tinha a menor utilidade, na verdade os cabelos estavam sendo úteis para prendê-lo e não o contrário, mas ficava lindo.
-Eu não lembrava que você tinha piercing.
-É porque faz um mês só que eu coloquei. Gostou?
-Hum... É que eu não gosto muito de piercings...
Como ela não ficou muito tempo no ônibus a gente se despediria com um sorriso e um "Té mais, hein".

3 comentários:

Sic disse...

eu acho que fiqeui com uma pitada de inveja...kkkkkkkkkkkkk sacanagem...

Anônimo disse...

Raphinha, adorei oq escrevestes... tens um dom muito bacana de levar as pessoas pro teu mundo..
saudades
bj
Renata Mendonça

Anônimo disse...

brigada rapha,
tu sempre lembrando que a gente tem que ter um lado ´perceptivo mais sensível dentro do onibus
hahaha

bjus