domingo, novembro 11, 2007

À Tarde, Quando Ela Passa

Ela sempre passa às 5, eu corro pra janela e a vejo passar, nem sempre ela me enxerga pq eu me abaixo, deixo só um olho no canto da janela pra vê-la passar, se ela me vir todos os dias ali vai achar que sou desocupado ou estranho ou os dois, vai ver que sou mesmo. Uma vez me distraí, tava tocando uam música que eu gosto muito, eu cantava displicente, fora de tom, quando percebi ela tinha parado, parei de cantar no mesmo instante, a surpresa me deixou embaraçado e vermelho. O sangue passou por uma imediata transfusão por qualquer outra coisa gelada e viscosa que demorava a correr pelas veias e fazia o coração bater dez vezes mais rápido pra conseguir bombeá-la. Ela sorriu, baixei o olhar e sorri de volta. Ela seguiu seu caminho e eu fiquei só de novo, com vertigens, prestes a desmaiar. Então aconteceu, fiquei eufórico, me descobri um daqueles apaixonados platônicos, que se contentam com pouco, verdadeiras migalhas afetivas, que me fizeram arder de paixão adolescente, mais uma prova da minha imaturidade emocional. O cinismo me fazia ciente de todos os indicativos de uma paixonite aguda, mas era um diagnóstico inútil, porque a paixonite é irremediável, não importa o grau de consciência.
Resolvi que a conheceria nos mais íntimos e desconhecidos detalhes que se pode conhecer alguém sem sequer perguntar seu nome. Nas semanas seguintes, na hora em que ela passava, eu me abaixava, de olhos fechados, ficava atento para ouvir o som dos seus passos, descobri que eram curtos, um pouco arrastados, aprendi o som que faziam quando ela estava de salto e que às sextas-feiras ela sempre usava sandálias. Uma vez eu estava no açougue, ouvi seus passos dobrando a esquina, de imediato me escondi, o açougueiro me lançou um olhar de estranheza, quando ela passou da porta coloquei o rosto pra fora, ela usava um vestido azul claro. Lógico que ela usava algo claro, eu jamais me apaixonaria por alguém que não tivesse a leveza dela. Era negra, disso meu pai não iria gostar, felizmente ele já está morto, mas faço questão de chegar bem do túmulo pra contar "Pai, eu vou casar e ela e às é pretinha feito carvão. Tenta me impedir".
O mais extraordinário desse dia foi o cheiro, tinha um pouco de flor e madeira, se fechasse os olhos eu o enxergaria em linhas saindo dos pulsos até o meu nariz. Fui guardando ela aos poucos. Uma vez eu estava andando e senti o cheiro, mas ela não estava por perto. Outra vez ela atrasou, fiquei muito preocupado porque parecia que ia chover. Da vez que ela não foi trabalhar então foi um inferno, fiquei lembrando do chefe nojento demitindo a coitada, ou do motorista irresponsável que a deixou caida no asfalto com um corte da testa que sangrava muito. Mas no outro dia ela voltou, então ficou claro que o desgraçado tinha se dado conta do erro idiota que estava comentendo e pediu desculpas à coitada, não havia curativo então, graças a Deus, não houve acidente.
Um dia eu sentei no degrau da portinhola do quintal, na hora em que ela passasse eu diria "oi". os minutos foram se aproximando das cinco e quanto mais próximos, mais parecia que havia um número infinito de nano, mili, micro e o diabo de segundos entre às 16:49 e às 17 em ponto. De novo aquela coisa foi colocada no lugar do meu sangue, a minha testa, eu tinha certeza, começava a se encher de pingos de suor frio, tinha a impressão que até o hálito me saía gelado, fazendo fumaça. Meu Deus, que ódio de mim, ela passou, olhou pra mim, sentado ali, nem levantei os olhos, era sexta e ela usava sandálias, o cheiro estava ali, entrei correndo, bati a porta, ouvi os passos se afastando e a linha do cheiro se tornando tênue, até sumir.

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