sábado, setembro 01, 2007

O Barco (final)

Desde que o barco apareceu a criança passava mais tempo nele do que em qualquer outro lugar, as outras ou tinham medo ou foram proibidas de chegar perto. Por um tempo o seu aparecimento trouxe certa notoriedade àquele bairro esquecido, que durou até o tempo de se tornar notícia velha.
Todos os dias trazia aquela flor, única, que só nascia num pedaço de chão dentro do barco, protegida do sol carrasco que iluminava por ali. Certa vez o monstro chegou mais cedo, perguntou onde estava o filho, assim que soube o que acontecia viu-se inconscientemente em uma situação privilegiada para deliberadmente prejudicar o filho. Pegou um machado para derrubar aquela aberração, a criança teria se oposto caso a mãe não a tivesse impedido. Não demorou para o barco ser destruído e a selvageria do homem ser parcialmente aplacada.
No dia seguinte todos ficaram alarmados, porque, sem que ninguém percebesse, o barco havia magicamente se refeito durante a noite, como se jamais houvesse recebido um ataque furioso de um homem de força descomunal. Descrente, ele resolveu repetir o ataque do dia anterior, mas no dia seguinte 'ele' estava lá, o novo inimigo estava lá.
O pior aconteceu num domingo, deixou a mulher e filho em casa e foi para um bar. Porém, a bebida não o fazia esquecer que 'ele' estava lá, na verdade fazia pior, ele não conseguia pensar em outra coisa que não fosse o inimigo infernal. Resolveu que daria cabo dele definitivamente, comprou um galão de gasolina. Trançava as pernas, mas manteve a força nos braços.
Esbravejava impropérios à um homem inexistente enquanto jogava a gasolina no barco, sem saber que escondido, no canto escuro onde colhia a flor todos os dias, estava seu filho, paralisado de medo com a voz do pai. As chamas começaram a consumir o barco e a criança gritou por socorro, mas seu pai gritava para o barco, seu inimigo, que este jamais teria salvação. Quando o fogo alto e a gritaria chamaram atenção dos vizinhos e de sua mulher na casa, todos foram para rua ver o que acontecia.
Assim que chegou próximo ao marido pôde ouvir os gritos do filho, segurou-o pelo braço, gritando "O que você fez com meu filho? Seu monstro, você é um monstro, desgraçado", ela teria continuado, mas ele, finalmente desperto, percebeu o que havia feito, lhe deu uma pancada tão forte que deixou seus dentes moles, antes de desmaiar ela ainda viu o fogo laranjado consumindo o barco. Ele fugiu e jamais foi visot outra vez. Os vizinhos a levaram para sua casa ainda desacordada, ninguém conseguiu apagar o fogo. O corpo da criança não foi encontrado, mas ninguém duvidava de sua morte.
Ela chorou por muito tempo, ao acordar encontrou em cima do lençol aquela mesma flor que lhe era trazida todos os dias, procurou o filho cheia de uma esperança desesperada, mas não o encontrou, era impossível. Seguiu com sua vida e eventualmente morreu, sozinha. A vaga existência tanto sua quanto de seu filho e marido e de um barco foi logo esquecida.

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